15.11.10

Inconstante Reflexo


Estava frio. Chovia consideravelmente. Um pensamento em particular me prendeu a atenção: Não cantei durante o banho ontem. Saí calada e enxuguei-me num estranho silêncio. Mas que silêncio. Os cachos continuavam pingando, alguns estavam presos ao meu rosto, acompanhados por alguma quantidade de água que ainda escorria. Com o dedo indicador, fui em direção ao espelho, pra desenhar ou escrever algo. Um hábito adquirido no decorrer da minha existência. Repentinamente, freei meu dedo. Não o permiti tocar o espelho e desenhar o coração que cogitava sair da minha mente. Não deixei que ganhasse forma.

Aquele receio, aquele impedimento. Era mesma eu? Eu barrando minha inconsciente vontade? De um segundo a outro já não havia mais sentido demonstrar algo que eu mesma duvidava. Era como se ao deslizar meu dedo pela água presa ao espelho eu estivesse retirando meu coração do peito e entregasse-o novamente. Por um instante doeu. Por um instante apenas. Minha dor transformara-se em raiva e ao mesmo tempo que a temia, apegava-me a ela como minha única chance de sobreviver. Ela me impediria de tira-lo de lá.

Sentia uma ignorância infindável dentro de mim mesma. Eu era uma pobre e desgraçada criança, iludida por pensar que alguém cuidaria de algo que lhe foi entregue de forma tão fácil. De mão beijada. E lábios também. Era uma tortura interna a que eu me entregava. Não sou masoquista. A tortura me era prazerosa enquanto eu não estava sozinha. E machucava, com cortes que eu só sentia depois. Depois que a bagunça estava feita e as portas estavam fechadas. Minha única saída era limpar tudo e aguentar a dor por mim mesma.

Aquela miscelânea de sentimentos que me invadiam tanto pavor, tanto vapor. Me odiava por ser fraca. Me odiava por ter consciência da minha fraqueza. Odiava ser variante e dependente dela. Eu me impus ser fraca. E mais um aperto senti, trazendo-me de volta a cobrança de mim. Eu conseguia me impor a fraqueza. Era hora de me impor a força. Ser racional. Mas como ser racional se ainda se possui um coração tolo, insóbrio e viciado?

Tinha medo de me entregar à razão. Medo de ser permanente. Minha meditação entre os azulejos me instigaram, me empurraram para um instante de delírio preso à razão. Ela me mostrara como ser racional, me fez deslizar o dedo que ainda jazia no espelho embaçado. Desenhei o coração, entreguei-o de mão beijada, sem lábios. Eu me encontrava fria e desejosa pelo nada. Ele não teve mais do que uma insignificância como existência. Não prolongou sua estada no espelho por mais de dois instantes. Esfreguei minha mão por todo a superfície, agonizada, expulsando-o, destruindo-o. Não ficaram restos dele, nem mais vestígio de embaçamentos.

Continuo a mesma fraca, a tragédia que nem eu mesma levo a sério. Sou uma covarde. Uma covarde com coragem suficiente pra sentir, mas que enojou-se de tal capacidade e mesmo assim desesperou-se ao imaginar que a perderia. Supliquei para Deus, Exu ou Buda, qualquer força da natureza para ter meu coração de volta. Eu era uma dependente compulsiva. Compulsiva por sentir. Fui tomada por uma vontade irracional de atacar a mim mesma. Larguei mão da razão, do meu instante racional. Apertei meu peito com a força que nunca tive, obrigando-me a acreditar que desenhos em espelhos não lhe arrancam o coração. Ele está aqui, está aqui! Senti-o pulsar forte, reagindo a toda aquela adrenalina que emanava por minhas veias. Era meu desespero.

Empurrei-me contra a parede e escorri pelos azulejos, até sentar no chão gelado. O volume de lágrimas que escorriam era incrível. Eu chorava inconsolavelmente, como se soubesse que o mundo estava pra desabar sobre minhas costas. Isso era a ultima coisa a que eu tentava me prender. Me sentia suculenta, sangüínea, cheia de vida. E que se danasse o mundo! Assumi que sou masoquista e egoísta ali mesmo, sentada. Tudo que eu queria era sentir, e o prazer que isso me proporciona vale o quase certo sofrimento que o sucede. Afinal eu não preciso ser perfeita, eu não sou uma deusa, sou uma rélis humana e aceito minha condição. Sou dotada de sentimentos e, mesmo os temendos por vezes, eles me deixam estupefata.

3 comentários:

  1. É o post mais lindo que já li na vida ! *-*

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  2. Interessante todo esse sentimento inconstante da personagem, que como qualquer outra pessoa tem seus medos e anseios. Gostei daqui, cara, sempre que der eu voltarei para ver mais um pouco.

    Abraços!

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  3. Às vezes eu também esqueço de cantar no banho. Ou nao consigo, vai saber.

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